Por que razão os cães continuam a não ser azuis, com manchasvermelhas? E por que razão não iluminam como fogos fátuos as campinas nocturnas? Por que motivo continuamos a praticar a criação de gado por razões económicas e não artísticas? (1)

Vilém Flusser, filósofo, 1988

A arte transgénica é uma nova forma de expressão. Consiste em introduzir genes fabricados a partir do nada ou genes existentes num organismo hospedeiro, no qual podem em seguida se exprimir. (2)

Eduardo Kac, artista, 1999

O coelho fluo, é completamente o contrário das nossas vacas clássicas,é inteiramente novo, pêlo e bigodes de um verde fluo, Green fluorescent, oque poderia ser o nome de uma rosa. Realizado com amor por um artista de laboratório no seu atelier-hospital, protótipo vivo, orelhas clonadas e doces, alvo ideal no campo transparente, caça 4D para um novo caçador.Boum. (3)

Olivier Cadiot, escritor, 2002


Expor hoje arte tendo por meio de expressão diversas abordagens biotecnológicas é ainda tudo excepto uma evidência. As razões são múltiplas:dúvidas sobre a identidade e o estatuto destes artistas biotec, assim comosobre o valor plástico das «obras vivas», suspeição em relação aos seus discursos, dificuldade em recriar em instituições culturais as condições e as competências técnicas requeridas, tentativas, da parte dos historiadores de arte estabelecidos, de integrar um pouco apressadamente esta corrente na longa tradição de uma fascinação prometeica ou na dos autómatos. Assim, acena nacional francesa do Lieu Unique em Nantes, estrutura alternativa,conhecida pelas suas tomadas de posição e pelo seu gosto da experimentação,parecia o local apropriado para esta tentativa de reunir, pela primeira vez,os protagonistas mais importantes desta tendência artística.

Mais uma vez ainda, Alba, a coelha fluo, não brilhou senão pela suaausência. Embora (ou porque) nenhum espectador tenha alguma vez visto esteroedor capaz de emitir uma luzinha verde graças a um gene de medusa (4), eque, em França, devia iniciar, no contexto da arte, o debate sobre o estatutodos animais transgénicos, ele adquiriu o valor iconográfico quase planetáriode um Che Guevara da arte biotec. Quinze anos bastaram para que a visão deuma arte agindo sobre os «mecanismos da vida» se realize, e inspire, por suavez, a ficção. Mas Alba é apenas uma sinédoque de uma tendência artística quese nutre doravante de todos os ramos da biologia contemporânea: datransgénese, da cultura de tecidos, da hibridação ou selecção vegetal eanimal, dos homo-enxertos, da síntese de sequências de dna artificiais, daneurofisiologia, das tecnologias de visualização da biologia molecular.Tornou-se uma realidade: os artistas entraram nos laboratórios. Transgridem deliberadamente os processos da representação e da metáfora para passarem àacção de uma manipulação do próprio vivente. A biotecnologia não é mais somente um tema, mas um instrumento: animais fluorescentes verdes, asas que se fazem crescer nos porcos, esculturas que se formam em bio-reactores e ao microscópio, ou então a utilização do dna como medium artístico.

A palavra chave destes empreendimentos é desvio. Entre a fascinação e a inquietação, com posicionamentos muito heterogéneos, os artistas que têm recurso a estes instrumentos não esperaram pelos debates sobre as células de origem embrionárias e os anúncios media-clónicos raëlianos para mostrarem diante de nós a materialização de futuros contestáveis a ficção não parece afectar mais ninguém suposta cristalizar as nossas inquietações, esperanças e fantasmas diante deste novo culto do possível. A sua estratégia é dupla: Para terem acesso aos domínios protegidos pela barreira dos saberes técnicos, eles infiltram-se aí, colaborando o que os torna suspeitos aos olhos do meio da arte. São pois partidários da bio-indústria emergente? Em obras ambíguas e complexas, mas não forçosamente escatológicas, eles reflectem sobre o novo biodeterminismo, sobre a imagem do homem através das suas partículas elementares, sobre o registo da vida, por vezes sobre o cientismo mercantil,o risco eugénico, o estatuto dos organismos transgénicos e a dissimuladaperspectiva das peças sobresselentes orgânicas à medida, na era daxenotransplantação o que os torna suspeitos aos olhos do meio da investigaçãoe da biotecnologia. São pois despertadores de consciência? Pode-se pôr emperspectiva o que está em jogo no século biotec, afim de levantar a voz deCassandra sem entreabrir a boceta de Pandora? A arte tem o direito derecorrer aos métodos que são moeda corrente na investigação? Os home-studiosbiotecnológicos estão para breve? Uma nova cultura popular, materializando osfantasmas tecnófilos herdados da era numérica? Nada de surpreendente que aarte se inspire e se sirva das tecnologias do seu tempo das primeirasvanguardas à arte da rede, os conhecimentos e os instrumentos foram alvo deuma questionação, com maior ou menor distância crítica. Mas pode-se desviaras ciências da vida? Utilizando-as, não se trata de fazer medo mas de asenfrentar. Numa época em que o que é realizável se realiza, estes artistaspõem em abismo a clivagem entre, por um lado, os discursos apologéticosoficiais da tecnociência, e, por outro, uma paranóia baseada, com ou semrazão, na inquietação, ou na recusa ponderada desta aceleração.

Ora, esta arte perturba. Porque toca nos nossos medos e reflecte as contradições do que nos anunciam como a «revolução biotecnológica». Porque,no momento em que as ciências da vida se desenvolvem com uma lógica do mercado, a arte mantém relações delicadas com elas, deixando-nos duvidar da sua autonomia. Porque desvela, para lá do símbolo, as perspectivas e as possíveis derivas. Porque leva os processos biotecnológicos até à suaaplicação paradoxal, ou simplesmente estética ou poética, transformando assimo habitual discurso utilitarista que nos promete um futuro radioso, digno daglosa muito gaio saber de Vilém Flusser descrevendo-nos a «Disneyland» dofuturo. Depois da era da des-materialização, da simulação numérica, da imersão, e do racional ou do processual na arte contemporânea, da«vaporização»(5), eis pois uma re-materialização levando mais longe oprincípio da construção e contribuindo para a expulsão do primado darepresentação. Por conseguinte, não se trata também de um regresso à obra,viva e ainda por cima teratogerada, nem tão-pouco da animação decriaturas-objectos decorrente dum fascínio pelos autómatos de antanho, ondejustamente a tecnologia estava oculta, mas antes de uma confrontação dasbiotecnologias com o seu desvio, por vezes paradoxal.

Então Alba branco em latim a coelha (às vezes) fluo e albina que OlivierCadiot vê como vinda da quarta dimensão, a do ready-mate (6) (científico)talvez, e cuja integração social é preconizada por Eduardo Kac, é um alien?Propondo normalizar «o anormal», Kac opõe o seu duplo aos símbolosmediáticos, tais como Dolly, evitando contudo condenar o transgénico em si(7), mas materializando as suas consequências. Ele partilha de uma ideia dofilósofo Peter Sloterdijk, interpretada por Yves Michaud: «Os filósofos e osespecialistas de ética raciocinam sempre subtilmente a priori sobre o queseria preciso fazer ou não fazer, mas pode ser que se devesse considerartambém a priori o juízo a fazer a posteriori sobre os erros do mundo e doshomens. A proibição dos gestos e dos processos conducentes a este monstruosoestender-se-á à condenação, à morte ou à colocação em quarentena dos seusresultados ou acolhê-los-emos nós com simpatia e cordialidade na grandefamília humana, arriscando-nos a nos habituarmos a coexistir com estes aliense a conhecer eventualmente uma nova aventura com eles, como estamoshabituados a aceitar os trissómicos ou os deficientes graves? Os riscos dasbiotecnologias surgem não somente antes mas depois delas.»(8) Assim, o íconeda coelha fluo muda, também ele, tornando-se um espelho societal que encena airritação dos meios de comunicação social e as opiniões antagonistascomparável ao espelho que o homem de teatro Christoph Schlingensief estendeuaos austríacos, depois da entrada do partido populista de extrema direita deJörg Haider no governo, com a sua instalação-performance Ausländer Raus (Foracom os estrangeiros)(9). Ele aí encenava, em contentores estanques em plenaViena, um jogo do género loft story no qual os cidadãos votavam para aexpulsão deste ou daquele requerente de asilo, gerando durante algumassemanas uma narração pública autónoma, violenta e complexa. Assim a Alba podesimbolizar tudo e até o seu contrário: «frívola e fascistóide», obra de um«colaborador»(10) que é aliás descrito como um grande resistente, um«biopunk» engajado na «luta contra os ogm» e que «trabalha em projectos deinvestigação a fim de evitar que a realidade passe por ficção»(11).

Quando a arte contemporânea mergulha tão literalmente na vida, faz-noslembrar, mas sem cairmos na armadilha das analogias abusivas, algumas ideiasfundamentais das vanguardas das primeiras décadas do século XX, nomeadamentedo construtivismo, do Bauhaus e, como o lembra Richard Hoppe-Sailer na suacontribuição: a substituição da representação da vida pela sua modificação,um certo impulso «prometaico» à escala da sociedade, uma concepção da própriarealidade como material de construção e, sobretudo, novamente a tentação dosaber científico e uma utilização ao mesmo tempo experimental e analítica dastécnicas emergentes conceito que evoca nomeadamente Laszlo Mohoby-Nagy:«Embora o trabalho de investigação do artista seja raramente tão sistemáticocomo o do cientista, ambos mantêm uma relação com a vida como entidade, e nãoem termos de pormenores. Com efeito, o artista fá-lo hoje de uma maneira maisconsequente que o cientista, pois que, com cada uma das suas obras eleenfrenta um todo auto-correlativo, enquanto que só os cientistas teóricos têmdireito a este luxo de uma visão global. A principal diferença entre osproblemas do artista e do cientista é a diferença na forma da suamaterialização e da sua compreensão/apreensão.»(12)

Nesta óptica, compreende-se melhor a abordagem do laboratório decolaboração art-science de SymbioticA, no Instituto de anatomia e de biologiada Universidade da Austrália Ocidental, em Perth, onde artistas einvestigadores trabalham de mãos dadas. Longe do tema sensível da genética, oprojecto tc&a Tissue Culture and Art adopta a cultura tecidular enquantoprática de plasticiante. As suas peças semi-vivas interrogam ao mesmo tempo omaterial utilizado e o contexto da sua aplicação potencial, desviada a fim deestabelecer a tal visão global, reclamada por Moholy-Nagy, das condiçõeseconómicas, sociais e morais. O exemplo dos seus Pig Wings, das «asas»palpitantes, cultivadas a partir de células de porco, deixa transparecer umaironia tornada carne em relação ao mercado com as suas perspectivasmirabolantes e os seus símbolos: Pigs might fly segundo a expressãoidiomática inglesa, «se os porcos tivessem asas, tudo seria possível». Umtrabalho inicialmente proposto, e imediatamente recusado, aquando de umpedido de projectos do Wellcome Trust, fundação privada para a investigaçãobiomedical, no quadro de uma exposição sobre as perspectivas fulgurantesabertas pelo anúncio da decifração do genoma humano. Ironia porque se as asasexistem na galeria, o tamanho delas deixa muito a desejar. As promessashiperbólicas reduzem-se a alguns centímetros quadrados. No DisembodiedCuisine, a banal normalidade da criação de animais em massa é posta emquestão pela perspectiva pseudo-positivista de esculturas semi-vivascomestíveis, cultivadas a partir de uma biópsia retirada de uma rã quecontinua a viver ao lado do bife em crescimento em teoria, estes bifes fazemlembrar as investigações científicas sobre o «bife de petróleo», o carburol,projecto levado a cabo nos anos 60 para se encontrar substitutos proteicosbaratos, mas abandonado na época da crise petrolífera de 1973 (13).

A perspectiva dos órgãos animais geneticamente adaptados para o homem, edas partes do corpo reconstituídas a partir de células de origem e cultivadasno laboratório, como essa famosa orelha implantada no dorso de um ratinho queteria agradado muito a Van Gogh e cuja imagem estimulou intensos fantasmas damonstruosidade, incita numerosos artistas a se interrogar sobre o pôr emcausa das fronteiras, dos limites físicos do corpo humano. Assim, a peledesaplainada, cultivada, hibridada e tatuada é o medium de expressão da arteorientada pelo objecto, fruto de uma experimentação sobre os própriosartistas. Uma cabine de curiosos auto-retratos biotecnológicos à maneira detótemes contemporâneos, destinados idealmente a que os coleccionadores osfaçam enxertar. A artista eslovaca Polana Tratnik joga com a confusão entre oartifício biológico, a pele de laboratório, que é mais superfície do queórgão funcional, e o látex, enquanto que a pioneira do body-art francês,Orlan, nos pergunta se culturas da sua pele não poderiam assar nosbio-reactores de SymbioticA/tc&a, de preferência pele hibridada com a deum dador negro, a fim de prolongar a sério as suas séries africanas demodificações corporais virtuais. Para quando o momento em que os génioscriadores conservarão as suas células em líquido criogénico, como algunsprémios Nobel o fizeram com o seu esperma, e se deixarão clonar parafinalmente criar verdadeiras famílias de artistas? Nesta direcção, o caminhojá está balizado com Chrissy Caviar®: a artista Chrissy Conant vende, embonitos frascos, os seus óvulos pretendidamente recolhidos aquando deintervenções ginecológicas repetidas, como «caviar humano, de ascendênciacaucasiana», para revelar as novas formas de prostituição e de exploraçãobiológica.

Mais reconfortante: a arte tendo por tema a biodiversidade, como asinstalações de plantas de George Gessert, um pintor que abandonou os pincéispor técnicas de hibridação vegetal. Ele lembra-nos que «a arte genética»embora numa pequena escala se encontra também em todos os jardins. Mas assuas instalações deixam aparecer, por detrás da fachada de uma simplesbeleza, reflexões sobre o eugenismo e a utilização da genética para efeitosde moda. Por uma espécie de «darwinismo invertido», Gessert favorece ofenótipo de plantas que respondem ao seu gosto pessoal, e muitas vezesinadaptadas às «leis» do mercado, pois diametralmente opostas à correnteestética dominante. Os artistas podem enriquecer de novo a biodiversidade? Nomesmo espírito da «arca de Noé», Brandon Ballengee tenta recriar uma espécieextinta de rã africana, em sentido contrário e a partir de espécies próximas.O biotecno-roman­tismo existe: tais projectos contêm a ilusão de que umatecnologia nova poderia reparar as falhas do impacto sobre o ambiente dasantigas tecnologias humanas. Que resta da Natureza? pergunta aliás Marta deMenezes, que se juntou a um laboratório universitário na Holanda com afinalidade de criar borboletas únicas. Perfurando as crisálidas com a ajudade uma agulha, ela obtém motivos controláveis nas suas asas. Estastransformações concernem apenas o fenótipo do insecto e não o seu genótipo,desaparecendo a obra assim no fim de cada ciclo de vida. Cabe a cada um a suadeontologia por uma «arte que vive». Como o faz notar Georges Gessert, quandose ultrapassa a representação, o segundo grau torna-se macabro: «Não houve umWarhol da selecção vegetal.»

Thirty are better than one parece, contudo, dizer Joe Davis,artista-investigador no Massachusetts Institute of Technology, de Cambridge.Mas diferentemente de Warhol, que «clonava» em 1963 a Joconda de Leonardo daVinci símbolo de referência da interdependência da arte-ciência, Davisreproduz ao infinito, não rostos humanos, mas o sexo feminino: Eledesenvolveu uma técnica de representação visual a uma pequena escala,designada DNAgraphy. O dna faz aí o papel de uma emulsão fotográfica e Daviscomeça por criar imagens emblemáticas do tamanho de um milímetro quadrado evisíveis ao microscópio, tal como Lorigine du monde segundo Gustave Courbet,visto que este quadro, também ele, «passou a maior parte da sua existênciafora da vista dos homens, à espera de ser revelado.» Trata-se, neste caso, deum desvio das pulgas de dna, normalmente destinadas a analisar a expressão demilhares de genes simultaneamente. Davis, que não está de maneira nenhumainteressado na manipulação dos organismos para mudar o seu fenótipo,sintetiza a matéria a analisar e desenha o seu receptor a fechadura e a chavepara pôr em código mensagens e imagens poéticas. Ao mesmo tempo, ele tocanuma problemática central da relação entre a arte e a ciência, a davisualização dos conceitos. Pela sua atitude, ele parece sublinharironicamente que achamos sobretudo o que o modelo empregue à partida nossugere. Porquê então não «visualizar o invisível»? É o que empreende Marta deMenezes nos seus Functional Portraits, realizados com a ajuda do conjunto deimagens funcionais através da ressonância magnética. Ela mostra actividadescriadoras como sendo fluxo bio-mecânico, o homem como matéria. Em nucleArt,Davis «esculpe» células humanas graças a projecções que reconstituem aestrutura tridimensional do núcleo humano.

Assim, embora influenciada pelas descobertas da bio-informática recente, aatitude experimental da maioria dos artistas biotec, com excepção de Davis,não parece determinada pelo desejo de encarnar as simulações dos «algoritmosgenéticos» da idade numérica, nomeadamente as operadas no sector da vidaartificial ou da arte genética numérica (14), mas revela-se antes de ordemfenomenológica. Quer dizer que ela opera através de experiências concretas,de realidades biológicas, e não através de proposições lógico-matemáticas quetendem a definir o genoma como o equivalente dum logicial perfeitamentecontrolável.

É justamente com este conceito que joga Eduardo Kac, no Genesis e na suapeça gémea Transcription Jewellery. Com Genesis, ele arrasta o visitante numpérfido e desestabilizante jogo de interacções, apresentado como lúdico eretransmitido pela Internet. Em bactérias realmente transgénicas, acodificação metafórica de uma frase bíblica e fundadora da nossa concepção dohomem é submetida a mutações. Ironicamente, Kac faz mutações nas suasbactérias com raios ultravioletas, isto é, com o factor mutagene maisquotidiano. Daí resulta, nas «Jóias da transcrição», pó de DNA das suasbactérias, purificado, poeira para atirar aos olhos, conforme com a denúnciaanterior do fetichismo genético, pela filósofa das ciências e feminista DonnaHaraway: «Com um pouco de imaginação, desvela-se o fetichismo comerciante nastrocas do mercado transnacional onde genes, essas coisas-em-si,macro-moleculares e de ouro com 24 quilates, parecem ser a origem dovalor»(15) Kac fecha o pó num frasco, uma relíquia... ornamentada com uma«proteína» de ouro maciço, talvez com 24 quilates, materializando assim oimaterial, como Edvard Munch o fez há um século atrás nas suas Madones, ondea heroína da imaculada concepção está rodeada por uma moldura salpicada deespermatozóides, e por um embrião com um olhar culpabilizador(16).

Mas tais estratégicas metafóricas são geralmente eclipsadas pela cargaemocional que contém hoje o recurso à genética, designadamente como medium.Artistas como Kac associa conscientemente títulos com conotação religiosa àssuas obras; este último utilizando a bioluminescência por transgénese comosímbolo de um necessário renascimento das Luzes no momento em que a maioriadas pessoas está mergulhada num estado de menoridade e de dependência emrelação aos especialistas, cujas batas brancas substituíram os hábitos negrosdos frades. O código genético desta maneira incensado, e a dupla-hélice vistacomo a escada de Jacob, não se deve também ao facto de que gostaríamos,inconscientemente, de ver em cada novo saber científico segredos místicosfinalmente revelados? Depois de Babel, encontrar-se-á por fim no DNA o «sonhode Leibnitz de uma linguagem universal, que seria ao mesmo tempo uma linguacharacteristica [universalis] capaz de permitir a descrição «perfeita» dosaber pela demonstração das «características reais» dos conceitos e dascoisas, e um calculus ratiocinator capaz de tornar a mecanização doraciocínio possível»(17)? Por outro lado, em referência ao chamanismo, algunsvêem mesmo a dupla hélice em toda a parte graças à emissão de fotões pelo dnaque permitiria a visão directa da estrutura em dupla hélice do genoma dosorganismos vivos(18). A arquitectura humana, e mesmo as escadas dos nossosprédios seriam geneticamente determinadas, pois «os genes da dupla hélicesempre estiveram com e em nós, [escadas] simples e duplas, enroladas àdireita e à esquerda, sempre foram normais na arquitectura»(19). E visto que«se descobre um programa: como censurar aquele que se pergunta se existe umProgramador?»(20) Enquanto Deus regressa assim pela porta das traseiras,obras como Le Huitième Jour, na qual Kac faz dos organismos fluorescentesverdes uma espécie de contador Geiger, indica-nos que nos encontramos já numambiente transgénico circunstância que nos escapa devido a «uma escala físicademasiado grande, e de uma escala temporal demasiado lenta» (21), um conceitoliteralmente retomado do tecnófilo Moholy-Nagy e das suas considerações sobreo espaço-tempo(22).

Mas que se olhe de mais perto: certas obras biotec não nos reenviam senãoa um futuro transfigurado. Qual é a natureza de um biomarcador desviado emmarcador social, da proteína verde, que só se vê sob uma luz azul e atravésde um filtro amarelo e que deixa aparecer o semelhante como outro? Se nosrecordarmos de Time Capsule em que Kac se implantava uma micropulga,destinada normalmente a encontrar ovelhas ou outros animais perdidos, seregistava ao mesmo tempo como o proprietário e o animal e dispunha na galeriaas suas fotos de família da Polónia dos anos 30 a marcação toma uma outracoloração. A escolha do código morse em Genesis é também determinada pelofacto de Samuel Morse ser «racista, xenófobo, anti-católico eanti-semita»(23), enquanto que SymbioticA constrói o seu laboratório negro em«homenagem» ao investigador Alexis Carell, pioneiro em matéria de cultura detecidos, prémio Nobel em 1912 mas também teórico do eugenismo na época deVichy (24).

Numerosos são os indícios mostrando que os artistas começaram a questionaros seus novos, e tão contestados, meios de expressão. Como o escreve GeorgeGessert: «Não podemos apreciar totalmente uma obra de arte a menos que elareconheça as questões que levanta, é por isso que a arte que ignora demasiadoo mundo, como O Triunfo da Vontade de Leni Riefenstahl, pode serprofundamente chocante. Em matéria de arte genética, a estética pura deve terem conta as questões que levanta qualquer intervenção na evolução.»(25)Enquanto se considerar apenas os artistas biotec através da escolha dos seusinstrumentos, eles não irão muito longe.

Por conseguinte, aparecem várias problemáticas recorrentes quanto àapresentação destas atitudes artísticas:

1) Muitas vezes, é sob um título chamativo que Instituições tentam abordaras questões provocadas pelos avanços biotecnológicos mas simplesmente de umamaneira temática. Aí reaparecem esculturas, quimeras de plástico oufotografias traficotadas, onde se dá um maior espaço aos artistas quemantiveram a sua distância crítica, permanecendo numa linguagem tradicionalque não compreende o recurso às biotecnologias enquanto meio de expressão. Ainflação deste tipo de exposições gera títulos como «Unter der haut» (sob apele) (Duisburg, Alemanha) ou «dnart» (Merano, Itália). A vantagem para asinstituições culturais é evidente. Pode-se recuperar metaforicamente oconteúdo de uma estratégia convencional de comissariado e insistir sobre afalaciosa continuidade da história da arte, sem se aceitar riscos, e semabordar as desconfortáveis preocupações éticas que engendra a arte biotec.

2) Um outro conceito é o de misturar obras que recorrem às biotecnologiascomo meio de expressão com outras que adaptam a sua linguagem clássica(pintura, escultura, representação, instalação) ao novo desafio. Nestacategoria classificar-se-á, por exemplo, a exposição ambulante «Paradise Now»(Estados Unidos). Esta estratégia tem certamente a vantagem de compensar asuposta falta de efeito plástico da arte biotec que, em muitos casos, seapoia mais sobre a lógica do processo que sobre a obra. Mas ao mesmo tempodilui-se nela a ruptura em benefício da confusão dos níveis de leitura.

3) Outra forma de apresentação: a dos centros de vulgarização científica,onde se guarnecerá de bom grado o cursus pedagógico de peças de artistas quetêm uma relação com o assunto abordado. Aí se esconde a armadilha dosempiterno discurso sobre a fecundação mútua das artes e das ciências, numespírito de néo-Renascimento que negligencia o facto de que os dois espaçosse desenvolveram posteriormente de maneira independente e assíncrona. O papeldo artista é aqui percebido como o que visualiza os conceitos, enquanto odesvio ou a subversão dos meios postos à disposição não têm aí ocorrência.

No quadro da exposição de Nantes, o parti pris quis-se diferente: abiotecnologia encontra-se aí ao mesmo tempo como meio de expressão e tema,medium e conteúdo. De onde vem então a atracção emocional de uma arte, cujoimpacto provém geralmente menos do valor plástico que da integração dovivente num processo estético, e que não reside num discurso conceptual masantes na materialidade, da qual o visitante se torna testemunha? Será porsaber que se trata de manipulações dos mecanismos da vida o que engendra areacção do visitante? Será o limite pouco nítido entre o que é o orgânico e ovivente? E o que acontecerá com a banalização destas tecnologias? Far-se-ásempre instalações biológicas, mas abordando-se outros conteúdos? Se édesejável que os artistas questionem os meios que empregam, será necessário,no entanto, que isso se torne a sua única obsessão? É a pressão social quepor agora exige esta direcção, como uma justificação do «injustificável»?Quando a obrigação cessar, esta forma de arte será ainda pertinente poroutras razões que não a escolha dos seus meios? Quando a tecnicidade, comotal, perder o crédito da novidade, o que restará dela? O verdadeiro debatesobre a arte biotec só agora começa a nascer.

Jens Hauser foi autor-realizador, concebedor e comissárioda exposição Lart biotech au Lieu Unique, que teve lugar em Nantes, de 14 deMarço a 4 de Maio de 2003.

A versão original deste artigo foi publicada em: Hauser, Jens (ed.): Lartbiotech. Nantes, 2003. Para esta edição o texto foi revisto e aumentado.

Tradução de Silva Carvalho

Notas

1 Vilém Flusser, em: Artforum, outubro de 1988; e em:Schriften, Band 2: Nachgeschichte Eine korrigierte Geschichtsschreibung,Bollmann Verlag, 1993

2 Eduardo Kac interrogado pelo autor, Ars ElectronicaLinz, Set1999, entrevista difundida no programa arte.

3 Cadiot, Olivier: Regresso definitivo e durável do seramado, Paris, 2002

4 Esta técnica de biomarcador é rotineira em ciência, masa expressão da proteína de fluorescência verde só concerne geralmente umapequena parte do corpo. Para mais detalhes ver a contribuição de Eduardo Kacnesta publicação.

5 Michaud, Yves: Lart à létat gazeux. Essai sur letriomphe de lesthétique, Paris, 2003.

6 Trocadilho entre o conceito de readymade, concebido porMarcel Duchamp, e mate, o companheiro. A construção imaginária de uma quartadimensão do readymate apoia-se sobre o fenómeno de que um objectotri-dimensional iluminado só lança no entanto uma sombra bi-dimensional,podendo pois fazer crer que a sua fonte inicial se poderia encontrar numaquarta dimensão.

7 Este debate não acabou mesmo entre os bioartistas:Assim Adam Zaretsky escreve: «Nenhuma arte que utiliza a faca (mesmoemprestada) deveria afirmar que ela é inofensiva.» Em: Baker, Steve: Kac andDerrida. Philosophy in the Wild? The Aesthetics of Care, Actas do simpósioorganizado em Agosto de 2002 no Perth Institute of Contemporary Arts.

8 Michaud, Yves: Humain, Inhumain, Trop Humain.Réflexions philosofiques sur les biotechnologies, la vie et la conservationde soi à partir de luvre de Peter Sloterdijk. Paris, 2002.

9 Lilienthal, Matthias e Claus Philippe: SchlingensiefsAusländer Raus. Bitte liebt Österreich. Francfort sue le Main, 2000.Schlingensief, convidado por Luc Bondy, não só atraiu as críticas dossimpatizantes da direita populista, mas também do movimento esquerdista decontestação, cujo cortejo atacou mesmo os contentores para arrancar oscartazes, antes de recuar tendo contestado que verdadeiros requerentes deasilo, e não actores, pareciam habitar os contentores, colocados mesmo emfrente da ópera.

10 Quéau, Philippe: Der Wal, die Küchenschabe und dasKaninchen (La balaine, le cafard et le lapin). Em: Unplugged. Art as theScene of Global Conflicts, Ars Electronica. Linz, 2002, pág. 289305.

11 dnart, Biennale Merano Arte, Merano, 2002, pág.104.

12 Moholy-Nagy, Laszlo: The Function of Art. Art andScience. Em: Richard Kostelanetz: Esthetics Contem­porany, New York, 1989, p.68.

13 Bud, Robert: La cellule et les biotechnologies.Biofutur (1998) 184, pág. 3840.

14 Ler a este propósito: Taylor, Grant: Les idéologiesobscures de la Vie Artificielle et des Monstres Mutants de William Latham.Em: The Aesthetics of Care, Actas do simpósio organizado em Agosto de 2002 noPerth Institute of Contemporary Arts. «Há uma tendência na culturatecnológica e na filosofia liberal para ver a máquina numérica como uma zonadispensada de moral, como um aparelho com valores antes de mais utilitários.Por conseguinte, a construção e a simulação da vida através dos processossintéticos, encarnadas por esta nova ciência da Vida Artificial sãoeticamente subestimadas. [...] O [logicial] Mutator age sobre o nosso desejode nos tornarmos um genetista que trabalha com o dna fazendo recombinações eque pode realizar formas de monstros e de monstruosidades.»

15 Haraway, Donna: Deanimations: Maps and Portraits ofLife Itself. Em: Jones, Caroline A.; Galison, Peter: Picturing Science,Producing Art. New York, 1998, pág. 187

16 Agradeço a Richard Hoppe-Sailer por me ter indicadoeste paralelo surpreendente.

17 Codognet, Philippe: De docta ignorantia. Transgeniccockroaches as living archives. Em: x-tra, vol. 4, no.2. Los Angeles, 2001.E: Gottfried W. Leibniz: De la production originelle des choses prises à saracine. Em: Oposcules philosophiques choisis. Paris, 1978.

18 Narby, Jeremy: Le serpent cosmique. Ladn et lesorigines du savoir. Genève, 1995.

19 Hersey, George: The Monumental Impulse. ArchitecturesBiological Roots. Cambridge, 1999, pág.6.

20 Bénichou, Grégory: Le chiffre de la Vie. Paris, 2002,pág. 108.

21 Eduardo Kac em Le Huitième Jour, um filme de JensHauser, 2002.

22 Moholy-Nagy, Laszlo: Space-Time Problems. Em: RichardKostelanetz: Esthetics Contemporary, New York, 1989, pág. 6974.

23 Kac, Eduardo: Telepresence and Bio Art. Networking Humans, Rabbits and Robots. Ann Arbor, 2003.

24 Bonnafé, Lucien; Tort, Patrick: LHomme, cet inconnu? Alexis Carell, Jean-Marie Le Pen et les chambres à gaz. Paris, 1992.

25 Gessert, George: Notes sur lart de la sélection végétale. Em: Hauser, Jens (éd.) op. cit. pág. 4755.


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