1

Far more disturbing than falling asleep at the wheel while driving is waking up.(1)

Vivemos, há algum tempo, como que semi-adormecidos, quando não em estado de sonambulismo profundo. Algo nos embaça a visão e nos impede de ver que estamos, provavelmente desde os primeiros momentos de vida, crescentemente aprisionados nas engrenagens e repetições de nossas próprias máquinas, sujeitados a seus ritmos não-humanos, imersos em suas vibrações e hipnotizados pela velocidade crescente dos fluxos materiais e semióticos que estranhamente nos unem a elas. Acontece todo dia, toda hora, o tempo todo, sempre que paramos num sinal vermelho, subimos num ônibus, entramos num elevador, olhamos para o relógio… É o que ocorre, por exemplo, quando aprendemos a dirigir um automóvel. Movimentos e acções que de início exigem toda a nossa atenção, logo começam a se tornar habituais e a «afundar» rumo ao inconsciente sensório-motor.(2) Com algum treino, não precisamos mais de «pensar» em cada um dos gestos necessários para conduzir o carro; eles emergem automaticamente, sem interferência consciente quando a situação o exige. Esse estado de «sujeição cibernética à máquina automobilística e aos sistemas de sinalização emitidos pelo meio»(3) não é de todo mal, antes sendo justamente aquilo que nos permite ocupar nossa consciência com outras coisas enquanto dirigimos, seja para conectarmo-nos com outras máquinas (internas ou externas ao próprio automóvel), seja para atentarmos para coisas que nada têm a ver com nosso meio ambiente físico imediato. Porém, já foi dito que motoristas de automóvel, quando vistos de fora, tendem a parecer semi-mortos, ou pelo menos parecem estar seguindo um cadáver.(4) Mesmo os mais animados, mesmo os mais velozes, coloridos, brilhantes e ruidosos motoristas, ainda esses, raramente escapam desse adormecimento crónico — pelo contrário, justamente por sua inconseqüência e extroversão, parecem ser esses os que mais evidenciam o facto de que não estar completamente conscientes de suas próprias acções. Seria cômico se não fosse trágico — ou talvez seja cômico justamente por ser trágico.(5) Não podemos viver eternamente em transe. Isso seria suicídio. Quem vive em transe bate o carro, exaure os recursos naturais, esgota seu próprio corpo. Mas como acordar?

2

…como se um phylum maquínico, uma transversalidade desestratificante passasse através dos elementos, das ordens, das formas e das substâncias, do molar e do molecular, para liberar uma matéria e captar forças.(6)

O ambiente inteiro vibra com a intensidade sonora de 120 decibéis do Techno que pulsa a mais de 140 batidas por minuto. Meu corpo não me pertence totalmente; meu quadril, meu peito, meu pescoço, meus pés, minhas mãos, minhas articulações, todos os meus órgãos parecem rebelar-se, movimentando-se por conta própria. Pedaços das velhas paredes que me envolvem chegam a se soltar, abrindo rachaduras e me preocupando com a possibilidade de que a casa venha abaixo, literalmente. Mas poucos parecem preocupados. O som é poderoso.

Na minha frente, um adolescente mexe-se de maneira curiosa. Sobreposto a uma oscilação lateral de todo o corpo num movimento harmônico simples, a parte superior de seu corpo alterna duas poses extremas: 1) os braços cruzados na diagonal, o direito estendido para baixo e com a mão na altura do cotovelo esquerdo (sem, no entanto, tocá-lo), o esquerdo flexionado e a mão na altura do ombro direito (sem, no entanto, tocá-lo); 2) os braços abertos, o direito dobrado com a mão na altura do ombro direito e ao lado do corpo, o esquerdo estendido e com a mão na altura do quadril ao lado do corpo. Poderíamos descrever as duas posições extremas do movimento como poses de defesa (os braços cruzados por sobre o corpo) e ataque (os braços abertos ao lado do corpo), ou, numa imagem menos belicosa, como uma alternância vital entre sístole e diástole. Porém, enquanto olho esse movimento e vibro com o ambiente, só consigo pensar numa coisa: «esse sujeito está fazendo alguma coisa com as mãos, alguma coisa que eu não estou vendo mas que é praticamente palpável no seu movimento». Tenho a nítida impressão de que ele pega alguma coisa com a sua mão direita por sob o cotovelo esquerdo e, em seguida, arremessa-a por sobre o ombro direito, os movimentos do braço esquerdo servindo como contraponto dessa ação. Talvez seja o facto de eu estar justamente no local onde essa «coisa» está sendo arremessada («o que ele está jogando sobre mim?»). Ou talvez seja a urgência e precisão mecânica com que realiza esses movimentos no tempo exacto do pulso sonoro, como se a música fosse o som de um complexo de máquinas do qual ele é apenas uma peça, um elo entre duas máquinas parciais, pegando o produto de uma delas e jogando-o dentro da outra, para a qual esse produto servirá como matéria prima. Sim! É isso! Ele está sendo maquinado! Assim como eu e todos os demais nesse mesmo ambiente vibratório. Somos peças de máquina, uma máquina monstruosa e espetacular cujo som ensurdecedor é justamente a música e cujo produto é principalmente desejo.

Ele eventualmente muda o seu movimento, outros também o fazem, e o complexo de máquinas virtuais que nos envolve se transforma. Afinal, «com as máquinas desejantes […], o uso, o funcionamento, a produção, a formação são uma só coisa». (7)

3

The automatic pilot that functions while asleep has to be awakened to its own automaticity, and thus go traveling in a new way with a new physiognomy (8)

O transe maquínico é a experiência concreta e vívida de que se é a peça de uma máquina em funcionamento. Essa poderosa dessubjetivação do movimento pela força do hábito é condição não apenas para a operação automática e sincronizada de máquinas mas também para nossa expectativa mais básica de que «isto» continue, «assegurando a perpetuação de nosso caso».(9) Mas o transe maquínico tem conseqüências muito diversas se as máquinas operadas são técnicas ou desejantes. A hipnose numa pista de corrida pode significar um êxtase mórbido.(10) A hipnose numa pista de dança pode significar um êxtase vital. O que aconteceria, porém, se a pista de corrida pudesse ser percorrida como quem percorre uma pista de dança?

Diariamente nos deparamos, seja em operadores especializados, seja em nossas próprias relações com nossas máquinas cotidianas, com o imperativo da sujeição maquínica—mesmo no terceiro mundo, onde «tecnologia é fetiche», «apropriada como uso suntuário e ostentação» e a presença supérflua de um elo humano entre dois mecanismos alimenta um inconsciente colonizado.(11) Dos favelados aos mega-investidores, dos operários menos especializados aos cientistas de ponta, atravessando as fronteiras nacionais e culturais, de classe, género, raça, etnia; tudo isso que forma a heterogeneidade irredutível da sociedade capitalista global parece dever sua consistência a essa espécie de transversal do transe maquínico que atravessa a todos, em maior ou menor grau. A máquina capitalista simplesmente não pode parar e a vida fora dessa máquina deve necessariamente esperar. Por quanto tempo? Não sabemos, nem temos tempo para pensar nisso. Aquele que pára é como uma peça que precisa ser substituída, excluído imediatamente do sistema, passando então a viver o seu negativo, como ferrugem, como atrito. Esse é o lado patológico do transe maquínico, uma espécie de hipnose que nos transforma em puros reflexos de necessidades instantâneas, como se as capacidades reflexivas e criativas do cérebro se tornassem supérfluas e nossa vida se reduzisse aos arcos reflexos da medula espinhal. É preciso fazer alguma coisa—acordar, antes que seja tarde demais, desse pesadelo que tomamos pela única realidade possível. Mas há de facto alguma alternativa além de tornar-se uma peça dessa máquina ou ser excluído de seu funcionamento? Talvez o grande movimento seja perceber que a máquina da qual nos tornamos uma peça no transe é muito mais vasta do que parece, da perspectiva limitada que habitualmente temos dela, movimento esse que bem poderíamos aprender com alguns xamãs tradicionais.(12)

O operador de uma máquina técnica capitalista não sabe ao certo de onde vem a matéria prima de sua máquina, tampouco o último destino de seu produto final. Ele só vê a transformação local que sua máquina opera, tornando-se um «apêndice vivo»(13) dela, nada além disso. Mas, pare! Escute! Esse som que a máquina faz, não pode ser uma linha de fuga, um «vetor desterritorializante […] que garante a consistência do território»?(14) Olhe novamente: o corpo do operador não é o corpo de uma pessoa dançando ao som dessa máquina? O construtor da máquina como coreógrafo, seu operador como dançarino, seu barulho como música.(15) Nada mal como movimento de desterritorialização! Tornar-se peça de máquina pode certamente ser «reduzir-se ao nível da máquina». Essa é, aliás, a regra na nossa sociedade atual. Mas tornar-se peça de máquina pode ser também fazer da nossa relação com a máquina uma outra máquina e nos deixarmos maquinar por ela, tornarmo-nos parte dessa outra máquina que muda junto com nossos próprios movimentos: «Máquina abstrata, da qual cada agenciamento concreto é uma multiplicidade, um devir, um segmento, uma vibração».(16) Máquina capaz de revelar no próprio reflexo o germe de uma nova reflexão.(17) O despertar do sonhador dentro do próprio sonho.

Era uma máquina agora há pouco e agora já é outra. Até agora fazia um trabalho, agora já faz outro. Ia numa direção e, de repente, mudou radicalmente. Passamos de um lado ao outro da máquina instantaneamente, sem embaraço, pois a máquina é formada e funciona justamente a partir dessas transformações. Afinal, o que pode uma máquina? Que potências nos abre? 

Notas

1 Bill Viola. «The Body Asleep», in: Reasons for Knocking at an Empty House: Writings 1973–1994. London: Thames and Hudson, 1995, pp. 233.

2 Cf. Gregory Bateson. «Style, Grace, and Information in Primitive Art», in: Steps to an Ecology of Mind. Northvale: Jason Aronson Inc., 1987 [1972], pp. 142–3.

Félix Guattari. «Espaço e Corporeidade», in: Caosmose: Um Novo Paradigma Estético. (trad. Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia C. Leão) São Paulo: Ed.34, 1992, pp. 153.

Cf. Robert M. Pirsig. Zen e a Arte da Manutenção de Motocicletas: Uma investigação sobre valores. (trad. Celina C. Cavalcanti) São Paulo: Paz e Terra, 1984, pp. 16 e 309.

5 Cf. Henri Bergson. O Riso: Ensaio sobre a Significação da Comicidade. São Paulo: Martins Fontes, 2001 [1899].

6 Gilles Deleuze e Félix Guattari. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia. Vol. 4. (trad. Suely Rolnik), São Paulo: Ed.34, 1997 [1980], pp.150.

7 Gilles Deleuze e Félix Guattari. O Anti-Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia. Rio de Janeiro: Imago, 1976 [1972], pp.229.

8 Michael Taussig. Mimesis and Alterity: A Particular History of the Senses. New York: Routledge, 1993, pp.25.

9 Cf. Gilles Deleuze. Diferença e Repetição. (trad. Luiz B.L. Orlandi e Roberto Machado) Rio de Janeiro: Graal, 1988 [1968], pp.133.

10 Cf. Javier Santiago-Lucerna. «Speed(racing): Ecstasy And Fascination» CTheory

11 Cf. CTeMe. «Politizar as tecnologias: entrevista a Laymert Garcia dos Santos» Nada 5:4–17 (2005).

12 Cf. Pedro Ferreira. «Os xamãs e as máquinas» Alegrar 2 (2005).

13 Karl Marx. O Capital: Crítica da Economia Política. (trad. Régis Barbosa e Flávio R. Kothe) Vol. 1. Livro Primeiro. Tomo 2. São Paulo: Nova Cultural, 1985 [1867], pp. 41.

14 Gilles Deleuze e Félix Guattari, op. cit., pp. 138.

15 Cf. Steven L. Thompson. «The Arts of the Motorcycle: Biology, Culture, and Aesthetics in Technological Choice» Technology and Culture 41(1):99-115 (2000), pp. 108–9.

16 Gilles Deleuze e Félix Guattari, op. cit., pp. 36.

17 Cf. Henri Bergson. Matéria e Memória: Ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. (trad. Paulo Neves) São Paulo: Martins Fontes, 1999 [1939], pp. 263. 


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